... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano III Número 39 - Março 2012

Editorial

Salvador Dali - Metamorphosis of Narcissus

Salve! Salve! É TUDA Março - atrasadíssima, mas sempre a tempo!

Depois das mais altas esferas festivas terem se acalmado, eis que este mesmo ainda aventurou-se em semis & minis Tournês Irlandesas com sua banda de tubarões, aka Wellfish - carente de um site descente, é verdade - que apesar dos pesares foi de um sucesso marítimo! Gostaríamos também de acreditar na sobriedade da platéia, mas em consenso resolvemos ignorar esse quesito. Um brinde à Bacco & Dionisio, dois nomes para o mesmo deus da colheita, da uva e do vinho!

Apesar de Cronos ter me visitado em Fevereiro, Março vem com TUDA! E apesar de atrasada - atrasou por que este mesmo que vos escreve não serve para gerenciar pessoas, e como sabem, a edição, editoração e publicação de TUDA envolve tanta gente que eu não sabia mais se tinha que mandar ou ser mandado! Vamos que vamos, com muita gente boa este mês, é só conferir - e opinar! Opinem TUDA, ela é bem democrática!

É isso aí companheiros: na suja LabUTA do dia-a-dia, só por hoje, devagar & sempre que atrás vem gente - e gente é o bicho mais estranho que existe, talvez o único que fala uma coisa querendo dizer outra, ouve o que quer quando quer... e se ofende por (quase) nada! Moi inclus. Como dizia um falecido amigo meu, "haja lago pra tanto narciso!"

Redação de TUDA

TUDA de bom!

Eduardo Miranda
O (auto-proclamado) Editor

Dívida Interna

© Heber Vega 2012 | Red prison, Iraq. Torture room

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
Dos autores

Participam desta edição:
Alex Tatiyants, Almandrade , Antonio Romane, Arnaldo Xavier, Cândido Portinari, Carlos Pardo, Cecília Meireles, Cesar Cruz , Curro Gonzalez, Dorival Fontana, Edson Bueno de Camargo, Eduardo Miranda, Frida Kahlo, Gherashim Luca, Heber Vega, Hugo Simberg, Jacek Yerka, Jim McDonald, Joaquin Sorolla, Johannes Vermeer, Jos Leys, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Judy Mackey, Marina Alexiou, Paul Cézanne, Pedro Du Bois, Plínio de Aguiar, Regina Alonso, Ricardo Portugal, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá, Ruy Espinheira Filho, Salvador Dali, Santiago de Novais, sculpturemoulds, Serge Sunne, Vagner Barbosa, Vera Lúcia de Oliveira, Zhang Xiaogang.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier


Os Orikais de Arnaldo Xavier

Arnaldo tinha um livro praticamente pronto para ser publicado, chamado Arma Zen, e que dedicaria a Paulo Leminski. Lendo o livro eu diria que a dedicação não seria necessária...

Um livro de orikais, como Arnaldo cosumava dizer. Uma mistura de orikí e haikais, Arma Zen era a segunda menina-dos-olhos de Arnaldo (a primeira era o inédito Hekatomblu, livro visual, provavelmente esquecido em alguma gaveta kafkiana), ao lado do já publicado Lud-Lud (Casa Pyndahýba Editora, 1997) que breve estará em TUDA!

Embora não sejam inéditos - já foram publicados no site da Casa Pyndahýba - os orikais de Arma Zen valem todas as penas deste mundo e de todos os outros, e merecem uma (re)leitura atenta e reflexiva. A série será composta de 12 edições de 4 orikais, revelam uma fase poético/literária em que Arnaldo buscava a concisão do texto, e este Arma Zen (juntamente com LudLud) é, de certa forma, o resultado desta busca.

Deleitem-se com mais esta faceta arnaldiana!

AXÉVIER!

1
A cavalo
cavá-lo
Cavahalo

2
Amá-la
jamais
domá-la

3
Nada
cabe
à solidão

4
Dia
agnóstico:
ateu lado

Poesia - Plínio de Aguiar

Frida Kahlo - Flower and Life

Amores

Joe chamou o porteiro para ouvir
Nossa Senhora das Flores

Abriu o livro prefaciado por Sartre
Ao léu e descobriu que Jean Genet

Não admitia aleatório meio de abrir
Livro, pois o porteiro olhou e disse

Palavras, onde o legítimo autor?
Não as quero, quero o francês

Proxeneta deitado na prisão
Pensando nos putos e santos.

E onde a cabeça e a gargalhada
Dele, Nossa Senhora das Flores?

Plínio de Aguiar
SSA, 2010

Poesia - Antonio Romane

Poesia - Ruy Espinheira Filho

The Wounded Angel, by Hugo Simberg

De súbito, do nada, uma carta

1
Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito a possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:
E eu quero por força ir de burro.
(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não – como pedido –
ajaezado à andaluza.
Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)

2
Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio do Éden),
deu no que deu.

3
Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ... e quanto pouco falta
para o fim do futuro!

4
Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse mais....
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente
morrer...

5
Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel alongamento do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos de abrir
docemente
a nossa noite:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Poesia - Santiago de Novais

Imagem enviada pelo autor.

Hóstias
Em algum lugar. Sou de Ogum.
Babas
De cães assassinos
Sou o tijolo
Que mordestes.
Não me feristes. Tens raiva.
Levo anjos aqui no coração.
Assim chegou na pastagem o cheiro de trigo cortado
das pradarias molhadas.

Dentro do coração o vazio de não poder sentir, 
E a vergonha.
E nada das palavras
Da claridade dos olhos dos soldados.

Pedras quentes chão turvam
Minha memória  algo
Que falta de dentro pra fora
Que eu já tive
Mas era como se não tivesse tido
Tropeço como numa música de Richard Wagner. Avesso.

Poesia - Dorival Fontana

Es un mundo pequeño después de todo, 2009
Curro Gonzalez, técnica mixta sobre tela, 150 x 150 cm.

Inconsciência

Toda dor que eu sinto,
é maior que a dor do mundo.

Toda fome que eu sinto,
é maior que a fome do mundo.

Toda injustiça que eu sinto,
é maior que a injustiça do mundo.

Toda violência que eu sinto,
é maior que a violência do mundo.

Toda indiferença que eu sinto,
é maior que a indiferença do mundo.

Todo pecado é maior que os pecados do mundo.
Todo amor que eu sinto morre comigo.

E o mundo um lugar cada vez menor.

Poesia - Pedro Du Bois

Judy Mackey - Heart Hug, oil on board

Abraços

Em meus braços cabe o corpo
(olhos fechados, passos rápidos,
  a mão aperta minha mão)

tensiono as costas e dirijo o passo
no espaço incolor da inexistência

(olhos se abrem
  e mãos se desprendem).

(Pedro Du Bois, inédito)

Poesia - Almandrade

Jacek Yerka - Baldachin

Ainda
o mar de Homero
habita
o céu da história.
Um lance
de dados e textos,
jogo da literatura.
Pensar é
abrir portas,
migrar
para o desconhecido.
Impossível se achar
um limite.

[ in Malabarismo das Pedras ]

Poesia - Ricardo Portugal

Zhang Xiaogang - Bloodline: Big Family, 2006, Lithograph, 49 x 57 inches

ponte na neblina
cruzam cobras de fogo
na noite da China

paisagem na neblina
luzes antigas
deslizam pelo rio

pracinha no inverno
trinta velhinhos dançando
um raio de sol

viagem dos velhinhos
bonés bandeiras vermelhos
cabelos brancos

soa o sino no templo
tempo é silêncio
tempo não é dinheiro

Poesia - Vagner Barbosa

Gost of Atlantic - Serge Sunne, 2008

Noturno praiano

O mar vomita imagens no meu crânio
Que lateja prestes a explodir e libertar milhares de símbolos
Como os fogos que espocam no réveillon lançando morteiros e estrelas no céu da praia de seixos e ossos de náufragos de ilhas distantes
Na areia e no pó dos corpos marinhos reduzidos a quase nada
Que um dia o mar alimentou e o vai e vem das marés embalou como um berço
No silêncio sem eco das cavernas submarinas onde a luz não chega e os peixes cegos tateiam os corais enfeitiçados que dançam ao sabor do fluxo das águas
Onde os baús aguardam o próximo século para serem abertos e as garrafas flutuam com mensagens do fim do mundo
Que se remexem no meu cérebro
Eu estou preso a estas emoções com as cordas do meu amor que me mantém atracado firmemente mesmo durante os tsunamis e as bebedeiras de vodka, mesmo enquanto as sereias perguntam Have you ever been to Eletric Ladyland? e os solos de guitarra vagueiam e reverberam como uma trilha sonora tocada pela brisa
Os peixes dançam, as baleias e os golfinhos comunicam-se por música
Faróis pulsam para lá da neblina onde um homem mora solitário aguardando um amor que não vem
Que não vem
Como uma nau com as velas rasgadas
Sem porto de chegada
Vagando pela eternidade
Até que alguém resolva afundá-lo
Libertando seus piratas da terrível maldição e dissolvendo-os no sal.

Poesia - Marina Alexiou

La Bata Rosa – Joaquin Sorolla
(ilustração enviada pela autora)

Através das frestas do coração o Sol invade o pequenino lugar daquela tarde, deixando um aroma de poesia
As persianas desnudas recortam no seu balançar aquilo que ao longe parece indicar um oásis. Os sorrisos, os olhares lânguidos cheios de música e paixão procuram aproximar-se dos labirintos interiores também eles iluminados pelo feixe de luzes desse momento de eternidade
Os suspiros daquela musa que encantada pela presença do amante deixa-se enlevar pelo mistério que até então desconhecia... Os seus olhos brilham como estrelas refletidas no mar. Ela agradece intimamente pelo olhar daquele que a admira. Como o de um deus que viesse de visita a esse mundo de sonhos ensolarados que é o Amor...
De todas as maneiras os olhares novamente se cruzam. Oblíquos, maneiristas, vertendo desejos, ansiando pela luz que permeia a descoberta dos sentidos...
A musa e o amante. Quanta ternura! Que aconchegante momento pinçado pela vertiginosa vida...
Os braços se abraçam de modo sensual e a brisa vem acompanhar a felicidade que envolve o casal que nada vê, nada percebe. O momento é de pura perda de si mesmo no outro...
O cenário é mínimo. Rósea é a perspectiva. Mas é o que basta para dizer muitas coisas a respeito da tranquilidade de uma tarde de amor.

Poesia - Edson Bueno de Camargo

Creatures 4 - Jos Leys, 2012
As Pedras de Cusco

as esporas
dos galos vermelhos da manhã
riscavam as pedras de Cusco
          com aço e fogo

tinir de sinos
          e o bronze do sol

as moças lavavam
os cabelos na fonte
e a fronte dos cavalos
também era vermelha

porque a grama
ninava os meninos
e suas esporas de prata
e abotoaduras de ouro
e dentes de metal
tudo brilhava ao sol

despiam-se os milharais
no fim da safra
um imenso amarelo
e seus grãos

e era verão
no coração dos homens
e baixo ventre das mulheres

no calor da tarde
a grande árvore
abraçava a praça

e ao longe galos novos
testavam os quintais
bicando o oco do horizonte

Poesia - Regina Alonso

The monastery at sunrise - Montserrat, Spain


Graça Especial

Ai, se me fosse dada
uma graça especial
de visitar MonSerrate,
o castelo divinal!...

Certamente a fantasia
viria habitar em mim.
Princesa agora seria:
manto de seda carmim
capa pelas escadarias
descendo até os jardins
caminhando pelas alamedas,
colhendo o branco jasmim.

A,i se me fosse dada essa graça especial,

abriria as vidraças, curvada sobre os beirais,

coroada pela arte dos arabescos ancestrais

ouvindo a cotovia ao despertar da manhã
e as rolinhas, em bando, ciscando
ciscando... cheias de afã!

Ai fosse abril, fosse janeiro,
primavera inverno verão...
Mesmo no frescor do outono
eu me entregaria à paixão!
Mulher-donzela entre colunas,
pisos, paredes de mármore,
pés em tapetes macios...
a sonhar em meio à beleza

vivendo em MonSerrate,

o amor de um homem verdadeiro

haveria de encontrar.

Ai, quem me dera!...

Crônica - Roniwalter Jatobá

Milkmaid - Johannes Vermeer
45,5x 41 cm, 1658-1660

Santa

Chamava-se Dora, mas foi apelidada de Santa pela sua tristeza. Era a quarta filha de um lavrador em sua cidade natal, mas a primeira vez que pegou pesado no trabalho foi no primeiro emprego, aos dezoito anos, já como empregada doméstica numa residência em São Paulo. Chegou à metrópole no meio dos anos 50 decidida a tudo, enfrentando uma viagem de quinze dias de pau-de-arara e trem pelas terras da Bahia e Minas. Se existiu de verdade, e ainda fosse viva, completaria 60 anos pelo Natal.

Embora saiba tudo ou quase tudo sobre Santa, nunca a vi em carne e osso. A sua história me foi contada por um antigo namorado, Jacinto, companheiro do quarto ao lado quando morei certa época numa pensão na Avenida Celso Garcia. Segundo ele, os dois vieram juntos. Na viagem, nasceu mais que uma sólida amizade. Despediram-se, no entanto, na estação ferroviária do Brás, e cada um buscou o seu próprio caminho. Antes, porém, ela falou de uma ocupação, numa casa de família, o porto seguro. Já em sua busca, ele lembrava por alto o mapa da moradia -- um sobrado branco com faixas amarelas e jardim na frente, na Bela Vista.

Em dias de folga, Jacinto vestia a roupa domingueira e saía naquele rumo. Descia na Estação da Luz, passava em frente à rodoviária toda colorida, caminhava pela Avenida Duque de Caxias, guiado por uma onda de esperança, como se tivesse a certeza que um dia ia deparar com Santa pelo caminho.

-- Até as pedras se encontram, imagine gente igual a nós que vivemos para lá e para cá – me disse.

Passou a andar em ruas cheias de casas, na Bela Vista. Olhava dentro de cada jardim esperando de uma hora para outra a imagem de Santa cobrir toda a dimensão de suas retinas. Chegava à Praça da Sé, cheia de gente nas manhãs de domingo. Aí, rodeava a catedral e já sabia o caminho até a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, esperando em vão a sua forte presença.

Uma vez viu uma mulher entre galhos verdes e flores de um jardim bem-cuidado. Molhava as plantas segurando uma mangueira comprida. De longe, lembrava o perfil e feições de Santa. Ele quis gritar pelas frestas do portão, mas ficou com receio. Ficou ali rodando feito peru tonto até o anoitecer.

-- A pele era clara e tinha o corpo cheio como o de Santa – na hora sonhou.

Não era, infelizmente. Tempos depois, um colega de trabalho de Jacinto me colocou a par de mais acontecimentos. Disse que o destino havia desmarcado o encontro dos dois para outra reencarnação.

-- Talvez, quem sabe, numa próxima...

Santa também folgava aos domingos. Vestia a melhor roupa e quase sempre chegava até o largo do Arouche. Na volta, ao cair da tarde, entrava na igreja da Consolação. Ali, conheceu um rapaz. Era Lírio, mestre de obras numa construção em Higienópolis. Depois da missa, Lírio a esperava na escadaria da igreja. Deu um leve puxão nos seus cabelos e pediu gentilmente para acompanhá-la pela mesma trajetória. Na Rua Santo Antônio passou a mão em seus cabelos. A partir daí, Santa achava que o domingo não chegava mais.

Um dia, ela sentiu leve tontura na cozinha. Sentou numa cadeira na esperança de que era uma coisa passageira. Foi melhorando, mas descobriu que estava grávida. Conhecia os sintomas e sabia que ia sofrer. Passou a comer de tudo. Adorava pão e doce. A patroa passou a guardar comidas em lugares trancados e colocou um cadeado na geladeira. Santa sentia o cheiro passar pelas frestas quando deitava no cubículo próximo à cozinha e não conseguia mais pegar no sono.

As madrugadas pareciam durar meses. Nas poucas horas insones, tinha o pressentimento de que a criança nasceria morta e ela também morreria. Acertou na primeira idéia. Nem Lírio teve conhecimento de um filho gerado e perdido, nem Jacinto encontraria mais o ente que era uma visagem ou alento na sua solidão.

As lembranças de Santa não vieram ao acaso, embora me recorde sempre de Jacinto, que vive hoje em São Miguel Paulista. Em certas noites, continuo a indagar se ela existiu mesmo ou foi delírio de um jovem migrante solitário. Mas isso é uma dúvida tão imensa como Deus.

Conto - José Geraldo de Barros Martins


O Famoso e Polêmico Padre Orozimbo Bongiovanni

“De lá subiu a Betel; ao subir pelo caminho, uns rapazinhos que sairam da cidade zombaram dele, dizendo: “Sobe, careca! Sobe, careca!” Eliseu virou-se, olhou para eles e os amaldiçoou em nome de Iahweh. Então saíram do bosque duas ursas e despedaçaram quarenta e dois deles.

” ( Reis ll 2:23-24 )
Esta passagem do Velho Testamento marcava o início de mais um sermão do Padre Orozimbo Bongiovanni, pároco de Capinzinho, uma cidade do oeste paranaense que devido seu decréscimo populacional deixou de figurar no mapa do estado em meados da década de sessenta. Sua aversão a crianças sempre fora notória, ao ser questionado pelos fiéis sobre a passagem na qual o Nazareno disse:

“Deixai as crianças virem a mim, não a impeçais, pois delas é o Reino de Deus.” ( Marcos 10:14 ),

ele repondia com uma tese obscura na qual, o sol do deserto teria causado danos à vista de São Jerônimo e quando este transcreveu os textos do hebraico e grego para o latim, criando a Vulgata ( o latim atual ), traduziu equivocadamente a palavra “humildes” por “crianças”…

A homilia daquele domingo transcorria em ritmo desenfreado, como era de costume, na verdade o nosso protagonista já não lembrava mais por onde havia começado aquele discurso, cuja retórica caledoscópica fazia com que os presentes perdessem todo e qualquer vínculo com a realidade… quando de repente, não mais que de repente ele interrompe o sermão e do alto do púlpito grita:

-”E você aí na terceira fila, que está mascando chiclé, o que pensa do que eu estou dizendo???!!!”

Todos olharam para a criança com cerca de dez ou onze anos, que vestida com uma camisa listrada verde e branca sob um macacão laranja, usando uma espécie de boné que cobria as orelhas, olhava indolentemente para o infinito…

– ” Ora, o que o senhor diz, qualquer um pode dizer…” respondeu o pequenino alegre a exalar o seu suor infantil.



-”Como assim? qualquer um…?”



-”Ora, qualquer um qualquer um…”

-“Ah é??? Você está me desafiando??? … então venha cá e reze a missa em meu lugar!!!”.



-“Em português ou em latim?

O Padre Orozimbo olhou fulminantemente para a inocente infante, achando que a combinação de sua expressão facial com o silêncio seria suficiente para intimidar o desafiante mirim.

Porém este avançou lépido até o altar, virou-se para todos que o assistiam e disse:

“Credo in unum Deum,

Patrem omnipotenten,



factorem coeli et terrae,

Visibilum omnium et in visibilum…”


Meia hora depois o pequenino encerrava a missa sob o olhar atônito dos presentes. 

O nosso protagonista nunca mais foi visto em Capinzinho, alguns dizem que atualmente ele é sorveteiro no subúrbio de Nova Igaçu, outros que é preparador de goleiros do Anapolina...

Conto - Cesar Cruz

Louis-Auguste Cezanne, 1865, by Paul Cézanne

Terra Arrasada

Oi, Baby!

Você já tinha reparado que nunca nos falamos por carta? Acho que esta será a primeira vez em quinze anos. Esquisito, né?

Você se lembra quando estivemos aqui pela primeira vez? Nossa! Quanto tempo, hein? Foi há 12 anos, eu me lembro bem do dia...

Éramos noivos e, naquele sábado, fazia um sol bem bonito, e tínhamos ficado desde cedo no sítio daquele casal de amigos seus, da faculdade, tinha rolado um churrasco gostoso, com futebol e piscina, e quando saímos já eram umas quatro da tarde (Raquel e o Lúcio ou Luciano, acho que eram esses os nomes deles; aliás, estarão morando em São Paulo ainda, Baby? Continuam casados? Tiveram filhos? De repente, me ocorreu um pensamento utilitário: será que na casa deles haverá um canto, uma edícula sobrando?). Você tinha aquele Uno vermelho, com nossos cheiros enraizados no tecido gasto do banco de trás. Bons tempos!

Lembro que íamos subindo pela Lapa e, assim que cruzamos a Cerro Corá e começamos a descer a Toneleros, você freou o carro tão forte que quase dei com o rosto no painel. Que foi?, eu perguntei. Você nem me respondeu. Debruçado sobre o volante, olhava para cima, através do para-brisa, como uma criança encantada com uma árvore enorme. Olha essa casa, você falou, com ar bestificado, está para alugar. Descemos do carro. Ligamos do orelhão para o número que constava na placa de aluga-se espetada no jardim. Em meia hora, o corretor chegou para abrir a casa. Lembra quando a gente entrou aqui, nesta sala, Baby? Lembra deste cheiro gostoso da madeira rústica? Ela estava assim, vazia, vazia, como agora, o pé-direito de cinco metros, o piso de longas tábuas largas de madeira antiga, com esse ranger charmoso, que depois o peso dos móveis anulou um pouco, além dos janelões de madeira, lindos!

Alugamos a casa e nos casamos logo depois. Que época boa...! Dali a três anos, quando você começou a ganhar melhor na firma (bem, começou a ganhar melhor é um eufemismo, né? Digamos que sua “retirada” tenha quintuplicado), fizemos uma oferta ao proprietário e a compramos. Você lembra da festa que fizemos, Baby? Só eu e você, rolando neste chão à noite?

A casa sobreviveu a nós, veja só... Quantas gerações já não viveram e fizeram as suas histórias aqui, e quantas ainda não o farão? E eu devo admitir que você foi mesmo um visionário. Ah, sim! Esta casa é linda, Baby, parabéns por tê-la visto, apreciado e compreendido antes de mim. Terei saudades daqui...

Mas me conta, você está surpreso? Fico aqui imaginando o susto, a sensação de desproteção que estará tomando conta de você agora, nesse exato instante. Qual sua cara diante da novidade? Olha, faz tempo que eu quero te fazer essa surpresa! Você me perdoa pela demora? É que para operacionalizar tudo, Baby, para encaixarmos todas as tarefas em meras doze horas (da hora que você sai pela manhã até a hora em que volta à noite), foi uma tarefa de projetista japonês. Sério! E eu e papai fizemos tudo sozinhos. Papai é um gênio, Valdir, você não acreditaria. Ele fez tudo por escrito, com croquis, desenhos esquemáticos, cálculos de horário, a compra das passagens, as nossas necessidades todas, as escalas que faremos e o nosso destino final, só você vendo. Só agora depois que mamãe morreu, e depois de termos nos aproximado por causa disso tudo, descobri esses talento no meu velho. Você sabia que ele não só falsifica assinaturas como também é mestre em arrumar pessoas que se fazem passar por outras até em frente ao tabelião?

Acredita que quando você saiu por essa porta bem aí, atrás de você, hoje às 7h, papai já estava na outra esquina com uma equipe de mudanças?

Me diz: o que você achou da sala vazia, só com a cadeira no centro e as folhas de papel em cima? É o estado da arte, né? Também tenho meus méritos, vai?, não é só o papi que é bom aqui. Não ficou parecendo uma pintura antiga? Admita. Olha lá da porta pra você ver, é uma legítima Natureza-Morta, digna de um Cézanne!

Baby, uma pena, mas meu tempo está se esgotando e tenho que ir. Só mais uma perguntinha: você já correu pelos cômodos da casa com esta carta na mão, endoidecido, o coração aos saltos, como sonhei que você faria? Ai, meu bem, fala, vai!? Não, não me deixa nessa curiosidade, eu estou tão eufórica! Nos meus sonhos, eu via você correndo afobado, o barulhão do piso ecoando nas paredes, você entrando num quarto, depois no outro, depois indo à cozinha, tudo vazio, e você num primeiro momento achando que fosse um daqueles assaltos incríveis em que os caras param um caminhão na frente da casa e levam tudo; e, branco de pavor do desconhecido, com cara de cachorro que se assustou com o estouro de uma bomba, recomeçando, de forma ridícula, a entrar e sair de cada um desses enormes aposentos ocos, cheios de ar, como que para se certificar de que realmente você viu o que achou ter visto.

Nos meus sonhos, Baby, em meio a essa loucura, você se dava conta de que havia uma cadeira no meio do caminho, no meio do caminho havia uma cadeira (Drummond). Oh, então você se espanta, parece haver folhas de caderno sobre a cadeira! Você apanha as folhas e... e... E...! É uma carta! E é a letra da Glória! E, agora, você vai andando e lendo, quase tropeçando, atropelando a leitura, sentindo crescer uma sensação ruim na barriga, de desgraça, de que alguma coisa grande e peluda está para saltar sobre você, e então você urina um pouco nas calças, sem perceber, a testa suada, um suor gelado, seu corpo todo querendo uma conclusão, e devagarzinho você se dá conta de que EU tenho algo a ver com isso tudo... É a MINHA letra ali! Rá rá rá rá! Baby, isso é demais pra mim, eu queria tanto estar aí assistindo de camarote! Pena, mas não se pode ter tudo na vida.

Ah, esqueci de te falar: o carro. Enquanto você está aí lendo, suando e se urinando, o seu carro já foi levado. Vai lá fora conferir, eu espero.

Viu? E não adianta tentar achá-lo, fazer B.O, essas coisas. Papai pagou uns caras bons. A essa altura, ele já deve estar sendo transformado em peças, milhares de peças que abastecerão desmanches pela periferia da cidade. Ei! Espero que você não tenha deixado sua carteira no console, como faz às vezes, senão nem documentos terá mais, pobrezinho!

Alessandra Regina Maconé. 20 de abril de 1988. Vinte e dois anos mais nova do que eu. Do que nós, né, Baby? Terá sido pela idade, ou pelos 30 quilos a menos que você me trocou por ela? Mas agora aqui, agachada, com tudo preparado para partir, escrevendo esta carta sobre o assento desta cadeira, fico pensando: o que o Valdir fará da vida agora sem mim, coitadinho? E sem nada, nada. Nadinha, além desta cadeira para sentar e pensar?

Uma longa viagem me espera, Baby. O papi achou que eu não deveria te incomodar com essa coisa de escrever carta, mas eu discordei. Afinal, sempre fomos tão unidos, não é? Você acredita que papai ocultou de mim nosso destino? Será uma surpresa, ele disse. Adoro surpresas! Será Grécia? Talvez... Noruega, Oslo? Quem sabe. Talvez algo mais próximo, Argentina, Chile. De qualquer forma, vamos só eu e ele. Desculpa não te convidar, é que achei que você preferiria mesmo ficar para recomeçar com sua magrinha.

A essa hora em que você lê isto, já devemos estar em pleno voo internacional. Delícia! Ah, esquece, Baby! Sei o que você está pensando. Não perca o seu tempo. Papi preparou tudo, tudo o que você pode imaginar, até os nomes falsos para o registro no voo. É bom ter dinheiro na mão, né? Papi levantou uma boa quantia com a venda da casa dele e do sítio... E o dinheiro compra tudo, Baby! Até amor verdadeiro, como disse aquele escritor.

Por falar em amor verdeiro, estive pensando na nova vida que se inicia para você e sua jovem Alessandra Magrinha... Com tantas mudanças, ela continuará amando você como diz que ama, um coroa que agora só tem as roupas do corpo sobre a pele? Ah! E você me perdoa por eu não ter dado tempo para que aquele ótimo plano do assalto seguido de morte, que vocês estavam planejando para mim, tenha se concretizado?

Bom, o que passou, passou! Sem mágoas, tá? O que vale é que a partir de agora você começará vida nova com ela.

Por falar em vida nova, vou torcer para as coisas continuarem bem lá na JWO para você. Vai que você dá o azar do doutor Jorge Wilson ter recebido uma carta anônima, cheia de provas, fitas com gravações e extratos bancários que comprovam que você andou desviando nos últimos 9 anos uma fortuna incalculável do caixa da empresa? Isola! Vamos parar já de papo negativo, que isso atrai desgraça, como dizia mamãe. Bola pra frente.

Olha, tenho uma sugestão romântica para te dar: durma hoje aqui com a sua Alessandra-magrinha-e-jovem, traz ela pra cá, Baby, não seja turrão! O único problema é a falta de conforto, mas nada que o amor não supere. Lua de Mel, Baby! Aproveita, hein, que o amanhã pode ser muito incerto.

Aliás, você reparou que a sua chave não quis de jeito nenhum entrar no tambor do trinco? Ainda bem que eu deixei destrancada, né? Viu, como penso em você?

Chega! Chega de contar tudo, menina da língua grande, assim você não deixa nenhuma surpresa para o Valdirzinho curtir amanhã.

Adeusinho, Baby! E fica com o beijo carinhoso da sua, sempre,

Glorinha

Conto - José Miranda Filho

Digital Dreams of a young woman from Buenos Aires in Madrid - Carlos Pardo

Encontro De Amigos - Parte 4

Deixamos Lisboa, depois de dois dias de muita emoção, com o coração partido e a promessa de lá voltarmos muito em breve. Adoramos! Apaixonei-me por Lisboa, Porto e outras cidades que visitamos. Enfim, amei Portugal.

Na manhã seguinte, alguns minutos, após o café da manhã, embarcamos para Madri. O aeroporto internacional de Barajas, como sempre, lotado! Naquela manhã estava ainda mais tumultuado pela chegada da seleção espanhola de futebol que havia disputado e ganho a taça das Américas. Após 50 minutos de voo estávamos em solo madrileno, e a nos esperar um casal brasileiro, amigos de Edward: Marcos e Rosemary, sua mulher.

Madri, a capital espanhola com mais de três milhões de habitantes nos esperava. Sua origem data do ano de 852, quando os Mouros construíram um forte perto do rio Manzanares. Entretanto, somente em 1561 a cidade tornou-se capital de Castela. Alguns séculos depois, durante a gestão dos Habsburgos e Bourbons, é que foram construídos alguns poucos monumentos, como a Plazza Mayor e o Palácio Real.

Marcos, um jovem executivo de um banco multinacional espanhol que opera atualmente no Brasil, exercia suas funções em Madri, para onde fora designado. Começou trabalhando em São Paulo, mas tinha uma vontade imensa de conhecer a Europa, especialmente Espanha. Um desejo que sempre o acompanhou, e que agora se realizara. O banco lhe ofereceu esta oportunidade em Madri. Ao termino do contrato, se assim o desejasse, poderia renová-lo, permanecer em Madri ou retornar ao Brasil.

Eles moram num bairro de classe média alta nos arredores de Madri, Majadahonda, não muito distante do centro. Residem num amplo apartamento, tipo duplex, com quatro quartos e muito conforto. Á frente do apartamento deles dá para se avistar o centro de treinamento do Atlético de Madri, famoso clube de futebol espanhol que abriga alguns brasileiros esperançosos do sucesso. Eles estão em Madri há apenas quatro meses. Sua esposa e filhos terão que retornar ao Brasil para renovação de vistos e resolver outras avenças consulares que a burocracia impõe, e que infelizmente são obrigados cumpri-las.

Passamos boa parte da madrugada recordando dos parentes, dos amigos, da família, enfim, conversando sobre amenidades e da politica do Brasil, bebendo vinho espanhol, conhaque Carlos I, e comendo “jamon” e outras preciosidades da culinária espanhola.

Marcos e Edward são conhecidos de muitos anos atrás. Tornaram-se amigos em São Paulo, durante uma feira de produtos eletrônicos da fábrica que Edward era representante, cujo evento fora patrocinado pelo banco de Marcos.

Ambos continuaram amigos, mesmo depois de Marcos ter regressado ao Brasil. Todos esses anos eles se comunicavam através de e-mails, e aproveitavam a oportunidade para atualizar e trocar ideias dos acontecimentos culturais e profissionais dos países em que viviam.

Levantamos no dia seguinte por volta das dez horas sem compromisso algum, já que quinta e sexta Feira, dias 12 e 13 de outubro eram feriados em Madri. Tomamos o café da manhã na “Confeteria La Flecha” que fica na Avenida Juan Bravo, no centro da cidade. Estávamos todos sentados à mesa nos fundos do restaurante onde dava para se avistar a avenida com seu trânsito caótico e barulhento. De repente, um cidadão que ninguém viu de onde veio, bêbado e impertinente, dirigiu-se para Carlos - um amigo espanhol de Marcos, também presente - e que fora nos apresentado naquele momento, dirigiu-se a ele e com o dedo em riste no nariz, disse: “Usted es el hombre a quiem busco” A principio Carlos não se surpreendeu, mas ao ver o cidadão armado, um sentimento de medo e meio de defesa o incentivou a partir para o revide. Com um pouco de dialogo e considerações, conseguimos contê-lo de sua fúria. O cidadão estava transtornado, furioso e demasiadamente embriagado. Sobre a mesa estava um panfleto impresso em letras garrafais e a três cores, anunciando o espetáculo de tourada que aconteceria naquela tarde em Madri. Aquele dia seria a consagração do famoso toureador Marcelo Pancho, ganhador do famosíssimo prêmio Don Ramon do ano passado. Sua fama já havia extrapolado os limites da Espanha. Esta seria a terceira vez que ele disputaria o prêmio espanhol. A cidade estava em festas. Os bares e confeitarias estavam lotados de apreciadores de touradas. Havia gente de todos os lugares: de Portugal, Itália, França, Alemanha e Bélgica. O cidadão que ofendera Carlos estava fora dos limites. Não tinha noção do que falava e nem domínio de si mesmo. Seu olhar amarelado denunciava a quantidade etílica que havia ingerido. Ao atirar-se contra Carlos, cambaleou e esparramou-se sobre a mesa onde estávamos sentados, quebrando alguns copos e pratos. O garçom agarrou-o imediatamente e o conteve com auxilio de alguns fregueses. A fúria demoníaca do cidadão se transformou num enorme pesadelo para nós, por julgarmos a infusão política separatista, já que o mesmo ostentava uma enorme botoeira na lapela do paletó alusivo à causa basca. Felizmente foi um engano e simplesmente ele havia confundido Carlos com outra pessoa que dias atrás agrediu Marcelo Pancho numa confeitaria em Mahadaonda, por ter dirigido gracejos a sua mulher. Desfeito o mal entendido, continuamos a tomar nosso café, sossegados.

Antes de partirmos para Toledo, andamos um pouco pela Plaza Mayor, como sempre lotada de turistas. Há ao redor da praça vários bares com mesas e cadeiras do lado de fora e sobre as calçadas, assim como várias lojinhas de presentes e lembranças de Madri e outras regiões da Europa. Na Plaza Mayor há de tudo: Lojas, bares, restaurantes, etc.

Ao visitar o estádio Santiago Bernabeu, famosa sede esportiva do Real Madri, logo na entrada, ao subir as escadarias deparamos com as fotos dos jogadores brasileiros Robinho, Ronaldo e o francês Zidane. A foto de Ronaldo é a única que estava pichada. Reproduzia um par de óculos ao redor dos olhos, talvez feitos por algum torcedor fanático, como se pretendesse com isso afirmar que o jogador precisava desse utensílio para enxergar melhor o gol adversário, pois ultimamente sua performance em campo não era das melhores. Por isso tem sido muito criticado. Segundo a imprensa especulativa espanhola o problema de Ronaldo, O Fenômeno, é mulher e balada.

Depois de um exaustivo giro pelas ruas de Madri, seguimos para Toledo, cidade monumento da Espanha, trafegando pela A-42, uma autoestrada bem conservada e de boa pavimentação, com pistas largas e duplas.

A principio, não imaginava a importância daquela cidade situada numa região seca, montanhosa, deserta e de clima quente. Contudo, ao lançarmos o olhar sobre a vista geral da cidade, descobrimos o interesse que tanta gente tem por essa região: Seus castelos e construções medievais. É linda demais! Miguel Saavedra de Cervantes, famoso escritor espanhol morto em 1616, expressou a beleza de Toledo nas seguintes palavras: “Toledo é a glória da Espanha”. Disse tudo! Reconheço e dou fé!. Quem sou eu para descrever Toledo! Porém, vi-a desta maneira. Lá em Toledo é tudo original. Pouca coisa tem o dedo do homem. Lá o homem não destruiu a natureza para fazer obras faraônicas, mas foi por ela brindado e abençoado.

Conto - Ronald Augusto

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Lamúria Acima

A decepção anunciada por todas as rádios ao longo do dia, finalmente começava a taxidermizar os passantes. Árvores tresloucadas e faróis acesos. Não me perguntem sobre o velho. Ele despertou há pouco; a cama está quase intacta, pois ele não se move durante o sono. Boceja rouquenho. As coisas lanhadas até os ossos brancos; foi desbastado, sem dó, o sopitado rancor diário das esquinas e gentes; ficar sob essa lição deve ter sido um inferno. Nenhuma lamúria, palma e mais nada. Cada movimento esboçado sob o cobertor decrépito faz o velho se arrepender de ter acordado. Se pudesse ao menos se encolher. De nada serve a pergunta, mas vá lá: como é que essa dona foi se abandonar assim, esturricada dessa maneira? Não sei, parece que passa o tempo todo cosida aos livros! O quarto, abafado e enublado com vapores amarelos, sustenta ainda mais o silêncio do velho. Tártaro na dentadura tartamuda. Segundo me disse a linguaruda que vive para lá, depois da região portuária, foram esses livros de religião lidos e relidos com desespero que chuparam toda a vida que ela esbanjava, mansa. Numa ruína de símbolos, é assim que a pobre vai acabar. Quando o meio-dia deixou tudo assim de um jeito pasmo e árido, minha argumentação foi ouvida com atenção, figurou como um alívio para o pessoal daquele turno.

Tradução - Eduardo Miranda


Gherashim Luca (23 de julho, 1913 - 9 de fevereiro de 1994) foi um teórico surrealista e poeta romeno. Ele é freqüentemente citado nas obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Nascido em Bucareste, filho de um alfaiate judeu, falava iídiche, romeno, alemão e francês. Durante o ano de 1938 viajou com freqüência para Paris, onde foi introduzido nos círculos surrealistas. Durante o curto período da Romênia pré-comunista, ele fundou um grupo de artistas surrealista, juntamente com Gellu Naum, Paun Paulo, Teodorescu Virgílio e Trost Dolfi. A Segunda Guerra Mundial e o anti-semitismo romeno forçaram-no ao exílio. Luca inicialmente escreveu suas obras em romeno, mas depois passou a escrever em francês. Trabalhou entre outros com Jean Arp, Paul Celan, Di Dio François e Max Ernst, produzindo colagens, desenhos, objetos e texto-instalações. A partir de 1967, suas sessões de leitura o levaram a lugares como Estocolmo, Oslo, Genebra, Nova York e São Francisco. Em 1988 ficou famoso devido a um programa de TV apresentado por por Raoul Sanglas, "Comment s'en sortir sans sortir", alcançando um maior número de leitores. Em 1994, ele foi oficialmente despejado de seu apartamento por "motivos de higiene." Luca vivia ilegalmente na França há quarenta anos, e não conseguiu lidar com a situação. Em 9 de fevereiro, aos 80 anos, ele cometeu suicídio pulando no Sena.

Ghérasim Luca - Cubomanie d'après le Printemps de Botticelli, 1944

Dedos? - Gherashim Luca

Deixe-me lhes contar sobre
a mulher sem dedos:
Uma noite ela veio,
entre as cortinas da janela,
para o banho noturno.
Eu estava nu com meus dedos
e ela era a mulher cega e sem dedos
nas mãos.
Me senti abandonado e assustado,
ela me disse para sentir seu seio sob minha mão;
ao tocar seu mamilo, branco e comprido como um dedo,
roubei seu coração
e ela sumiu, assim como veio.
Meus amigos do quarto ao lado,
Meus amigos e vizinhos do quarto ao lado,
todos tinham apenas um dedo.

O Edifício dos Sem Dedos, é como nosso prédio é conhecido.

Essa é a história da mulher sem dedos.

Degete?

Lasă-mă să-ţi spun acum
despre femeia fără degete:
A venit într-o seară,
pe când lipeam cearşaful de ferestre,
ca să fac baia de seară.
Eram gol până-n deget
şi ea era femeia oarbă şi fără niciun deget
în deget.
Când ma pipăit gol, sa speriat
şi mi-a spus să-i pun mâna pe sân să-mi confirme;
când mi-am agăţat degetul de sfârcul ei alb
mi la furat în ventricul
şi a dispărut cum a venit.
Şi la prietenul meu din camera vecină,
şi la vecinul prietenului meu din camera vecină,
tot câte un deget.
Clădirea fără deget este porecla clădirii noastre.

Aceasta-i povestea femeii care n-avea niciun deget.

Releitura - Cecília Meireles

Speechless, 1999 - Alex Tatiyants

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

[ in Viagem, 1939 ]

Foreign Word - Vera Lúcia de Oliveira


The cloudy days

loved the satin and far planes cloudy days
the powder glittering over things
the footprints of light on the surfaces
the tracery of chinks in the shadows
the fringed towel drizzling the night

Os dias nublados

amava os dias nublados de cetim e aviões longínquos
o pó de arroz nas coisas rebrilhando
as pegadas da luz nas superfícies
o rendilhado das frestas na penumbra
a toalha franjada da chuvinha na noite

Ilustração - Jim McDonald


"Going Home", from the Titanic Series by Jim McDonald

Ilustração - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins